Muitos anos atrás, li em algum lugar que o motor CHT é derivado do Renault Ventoux. Não causa surpresa, pois este motor, apesar de ser conhecido aqui como um motor Ford, ele descende do motor do Ford Corcel, um projeto herdado pela Ford quando esta comprou a Willys-Overland do Brasil, que fabricava sob licença aqui os carros Renault. A Willys fabricava no Brasil os Renault Dauphine/Gordin/1093 e, com o mesmo motor Ventoux – nome dado em homenagem a uma montanha no sul da França onde se realizavam provas de subida de montanha muito conhecidas – o Interlagos em versões cupê, conversível e berlineta, esta um elegante cupê. Sendo assim, e dada a semelhança externa entre os motores, era natural concluir que um era a origem no outro. Em vários sites da internet afirma-se que o CHT origina-se do Ventoux.
Dizem que uma mentira contada muitas vezes acaba por tornar-se uma verdade. É o que ocorreu na internet: Até mesmo sites em inglês sobre o motor Ventoux diz-se que o Ventoux originou o CHT, como se o CHT fosse uma versão do Ventoux. Só que a informação de que o CHT descende diretamente do Ventoux é equivocada.
O Ventoux havia sido desenvolvido inicialmente pela Renault para o 4CV (conhecido aqui como “Rabo Quente” por causa de seu motor traseiro – o fato de ter desembarcado aqui alguns anos antes do Fusca livrou o VW desta pecha), lançado em 1947, substituindo o antigo motor de válvulas laterais que equipava seu antecessor, o Renault Juvaquatre. Inicialmente, tinha 760 cm³, tendo sido aumentado até 845 cm³, sua maior cilindrada.
Renault 4CV "Rabo Quente" |
Em 1956, o motor, já com sua cilindrada aumentada para 845 cm³, recebeu o nome de Ventoux e foi utilizado no Dauphine, carro que chegaria por aqui em 1959 pelas mãos da Willys. No início dos anos 60, a Renault queria desenvolver um novo carro para suceder o Dauphine na França. Maior e mais pesado que o Dauphine, era necessário fazer um motor maior para ele.
O problema é que o motor Ventoux já estava no limite de sua cilindrada, tendo diâmetro dos cilindros de 58 mm e curso dos pistões de 80 mm. Por isso, foi preciso criar um novo bloco, mais comprido e mais largo, que pudesse acomodar os pistões maiores. A Renault fez isso aproveitando ao máximo o desenho do bem sucedido Ventoux. O novo motor seria um “Ventoux de Itu”. Um bloco mais longo implicava em um virabrequim de comprimento maior, que seria mais suscetível a torções. Para o novo virabrequim, os 3 mancais (pontos de apoio do virabrequim no bloco do motor) do Ventoux eram insuficientes, por isso o novo motor precisou ter 5 mancais.
Motor Ventoux |
Este novo motor, inspirado no Ventoux, que foi criado para equipar o novo Renault 8 a ser lançado em 1962, foi chamado de Sierra (a partir dos anos 1980, rebatizado de Cléon). O primeiro Sierra tinha duas versões, uma de 956 cm³, com cilindros de 65 mm e curso de 72 mm, que equipava o Renault 8, e outra de 1.108 cm³ (com o diâmetro aumentado para 70 mm), para o utilitário Estafette. O 1.108-cm³ também equiparia o Renault 10, uma versão aumentada do Renault 8, em 1965.
Apesar do Ventoux ter sido a clara inspiração do Sierra, de iguais eles só tinham os desenhos, pois praticamente não tinham peças em comum, Portanto, é um erro dizer que são o mesmo motor. Para começar, o Ventoux tinha apenas 3 mancais, o Sierra foi desenvolvido com 5 mancais. Além disso, o comprimento do Ventoux era menor, o maior diâmetro dos cilindros era 58 mm, contra 76 mm do Sierra (chegando a 77 mm no Brasil e na Argentina). De semelhanças, ambos usavam comando lateral acionado por corrente, bloco em ferro fundido, cabeçote de alumínio, válvulas no cabeçote (OHV) e camisas úmidas removíveis.
Motor do Corcel, um legítimo Renault Sierra |
Durante a segunda metade da década de 1960, a Renault estava desenvolvendo um carro médio, para suprir a lacuna entre o Renault 8 e o Renault 16, que viria a ser o Renault 12. O projeto estava sendo feito em conjunto com a Willys brasileira, que inclusive teve a liberdade de fazer o seu próprio desenho de carroceria do novo carro (que ficou até mais bonito que a versão Renault), aqui chamado de “Projeto M” (de médio). No meio do caminho, em 1967, a Ford comprou a Willys no Brasil, herdando o projeto M já praticamente pronto. No ano seguinte, foi lançado o Ford Corcel (junho de 1968), ao mesmo tempo em que o Gordini era descontinuado. Curiosamente, o Corcel, a nossa versão do Renault 12, foi lançado antes mesmo do próprio Renault 12, que só iria debutar na França no Salão de Paris em outubro de 1969.
Propaganda de lançamento do Corcel, de 1968 |
O Renault 12, assim como seu irmão brasileiro, aproveitavam o motor Sierra do Renault 8. Como o carro era maior e mais pesado que o 8, sua cilindrada foi aumentada para 1.289 cm³, através do aumento do diâmetro dos cilindros e aumento do curso dos pistões (73 x 77 mm).
Esta é a verdadeira origem do motor CHT: Um Renault Sierra com cilindrada aumentada, não um Ventoux. Mas ele ainda não se chamaria CHT pelos próximos 15 anos.
Renault 12. O Corcel ficou mais bonito, não acham? |
Poucos anos depois, em 1971, o motor do Corcel teve sua cilindrada aumentada para 1.372 cm³, com a adoção de cilindros de 75,3 mm de diâmetro. Na Europa, o Sierra foi aumentado para 1.397 cm³, com cilindros de 76 mm (mas isto ocorreria apenas em 1976). Começava aí o distanciamento entre o motor Ford e o Sierra. Em 1979, a Ford aumentou a cilindrada de seu motor para 1.555 cm³, lançando o Corcel 1.6. A Ford foi a primeira a usar no Brasil a notação um-ponto-seis, designando a cilindrada em litros, porém, de forma errônea, pois em português o separador decimal é a vírgula, não o ponto. O correto seria “Corcel 1,6” (um-vírgula-seis). Para fazer o "1.6", a Ford aumentou o diâmetro dos cilindros para 77 mm e o curso dos pistões para 83,5 mm. Esta configuração nunca existiu na Europa, onde o Sierra/Cléon nunca passou dos 1.400 cm³.
Em 1983 a Ford renovou o motor do Corcel para o lançamento do Escort, fazendo o CHT. Foram redesenhados o cabeçote e os pistões, com o objetivo de fazer uma câmara de combustão de alta turbulência, que é exatamente o significado da sigla CHT (Compound High Turbulence – mistura em alta turbulência) . A idéia da alta turbulência é tornar a mistura mais homogênea, melhorando a queima e assim possibilitar o uso de misturas mais pobres, o que contribui para a economia de combustível, que sempre foi uma característica marcante do CHT.
Em 1987 o CHT passou por pequenos refinamentos e passou a chamar-se CHT E-Max (de Economia Máxima). Em 1989, Volkswagen e Ford já juntas sob a holding Autolatina, recebeu mais melhoramentos (pela VW), visando a aumentar a sua durabilidade e foi rebatizado de AE1600 (Alta Economia), sendo estendido à linha Gol. Em 1993 é lançado o AE1000 (997 cm³), uma versão com cilindrada reduzida para atender à redução de impostos do carro popular. Em 1995 foi lançado o AE1000i, com injeção eletrônica monoponto Ford EEC-IV, para equipar o Gol 1000 Plus.
Em 1996, o motor AE sai definitivamente de linha no Brasil, sendo substituído pelo motor AT da VW, o primeiro produtoda nova fábrica de motores da marca alemã – já livre da Autolatina – em São Carlos, no interior de São Paulo. Na Ford, era usado apenas nos Escort Hobby 1,0 e 1,6, que saíram de linha em fins de 1996. Seus substitutos, os Fiesta 1,0 e 1,3 usavam o motor Endura-E, que apesar de também ter comando no bloco (embora tivesse cabeçote de fluxo cruzado), não tem nenhuma relação com o Sierra, sendo derivado do motor Kent da Ford inglesa, motor tão antigo quanto o Sierra, tendo sua origem nos Ford Anglia de 1959.
Na Europa, o Sierra continuou evoluindo também, equipando praticamente todos os Renault pequenos. Mudou de nome no início dos anos 1980, vindo a se chamar Cléon. Sua última aplicação foi o Twingo, que equipou até 1996. O motivo oficial para sua descontinuação no velho mundo? Ele não conseguia ser adequado aos novos índices de emissões exigidos.
Motor Cléon no Twingo |
Na Argentina, o Sierra teve sua maior cilindrada: 1.565 cm³, com o uso de diâmetro de 77 mm e curso de 84 mm. Foi produzido até 2001, equipando em seus últimos anos na terra dos hermanos o Clio de primeira geração e o Renault 19.
O próprio Ventoux, extinto no Brasil com o fim do Gordini em 1968, continuou a ser fabricado na França com os mesmos 845 cm³ até 1984, equipando as versões mais baratas dos menores carros da Renault, como os Renault 4 e 5. O último a utilizá-lo foi o Renault 5 de primeira geração, que existiu com esta motorização até 1984.
Com a abertura das importações, no início dos anos 1990, nossos mecânicos foram surpreendidos ao abrir o capô de alguns carros Renault e encontrar lá embaixo um motor praticamente idêntico ao velho e conhecido Ford CHT. Era ninguém menos que o Renault Cléon, irmão gêmeo do CHT, que equipou os Renault Twingo, Renault Clio I e Renault 19, que vinham para cá da França e da Argentina.
Depois desta explicação, não quero mais ver ninguém papagaiando que o “o CHT é uma evolução do motor Renault Ventoux”, e sim que é uma versão do motor Renault Sierra ou Cléon!
CMF
Muito boa a aula, aprendi muito.....
ResponderExcluirMuito boa a aula, aprendi muito.....
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